Segunda, 03 de Novembro de 2025

Governança quilombola fortalece titulação no Pará, mas reconhecimento no Marajó ainda é lento

Quilombos do Pará fortaleceram a governança territorial e a autonomia sobre o Cadastro Ambiental Rural e se tornaram referência na Amazônia.

Foto: Divulgação
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Rede Cidadã InfoAmazonia

03 novembro, 2025 às 12:19

No arquipélago do Marajó, o tempo ainda se mede pelo ritmo das águas e são os quilombos que garantem que a floresta e os rios continuem vivos. Espalhadas entre várzeas, igarapés e campos naturais, essas comunidades são pilares fundamentais da preservação ambiental na Amazônia.

Segundo levantamento inédito do Instituto Socioambiental (ISA) e da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), os territórios quilombolas da Amazônia Legal preservam em média 92,3% de sua cobertura florestal, o equivalente a 3.391.339,1 hectares de florestas, funcionando como barreiras contra o desmatamento, a degradação das matas ciliares e a perda da biodiversidade. Os dados são da série histórica de 1985 a 2024, da rede MapBiomas.

Na Amazônia, o Pará é o estado com a maior porcentagem de territórios quilombolas titulados, áreas já delimitadas: são 163 mapeados no total, dos quais 102 já estão titulados (62,58%). Além disso, são 538 quilombos identificados, comunidades localizadas como pontos no mapa da Amazônia Legal, que podem ou não estar dentro dos territórios. O estado também se destaca por concentrar a maior extensão de áreas sob gestão tradicional de territórios quilombolas, somando 1.462.852,9 hectares.

Esta é a quarta reportagem da série Amazônia Quilombola, uma produção da Rede Cidadã InfoAmazonia em parceria de Carta Amazônia e InfoAmazonia, que aborda a governança territorial e os desafios de titulação em áreas quilombolas, com base no levantamento, que integrou diferentes bases de dados, como Instituto de Terra do Pará (Interpa), o Instituto de Terra do Maranhão (Interma) e o próprio Incra, entre diversos outros, para identificar os territórios quilombolas e os quilombos.

O Pará se destaca pela presença de organizações quilombolas ativas, como a Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará (Malungu), que lidera processos de governança territorial e de autonomia sobre o Cadastro Ambiental Rural (CAR) para os quilombolas, uma referência para Amazônia.
 
Apesar do cenário positivo, a titulação não chega para todos. Segundo a Malungu, de 49 comunidades do Marajó associadas à organização, apenas 15 são tituladas, um reflexo da lentidão do processo. “O estado do Pará é o que mais titula na Amazônia, mas ainda é pouco. A maioria das comunidades espera há mais de 20 anos. São 20 anos de luta, de reuniões, de promessas e de resistência”, avalia o líder quilombola da comunidade Caldeirão e membro da coordenação da Malungu, Hilário Moraes.

[MAPA] - Link 

A força da governança quilombola 

Boa parte dos resultados dos índices de conservação florestal vem da governança territorial exercida pelas próprias comunidades. A Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará criou uma metodologia inovadora de CAR quilombola autônomo, realizada pelos próprios moradores.

Essa experiência garante que os registros ambientais e fundiários sejam controlados pelas comunidades, fortalecendo sua autonomia. Além disso, a Mesa Quilombola, criada pela Malungu, reúne lideranças e órgãos públicos para debater demandas e construir soluções conjuntas.

“O CAR quilombola é mais que um documento. É um instrumento de poder político e ambiental”, explica o pesquisador Antonio Oviedo, do ISA, e coordenador do levantamento. “É a prova de que a conservação da Amazônia passa pelas mãos de quem vive nela.”

Para Hilário Moraes, a titulação das terras quilombolas no Marajó é mais do que uma demanda jurídica, é um ato de sobrevivência e justiça ancestral.

 

Luta por titulação em Gurupá se arrasta por vinte anos - Foto: Harrison Lopes/Agência Carta Amazônia _1466_resized.jpg 

“A nossa busca pelo título é o sonho de todo negro e negra desde quando o Brasil é Brasil. O título é um grito muito alto de liberdade. Claro que só ele não resolve tudo, mas é o que garante a vida, a autonomia e o direito de viver sem arma na cabeça. É o diamante mais precioso que a gente busca.”

A Malungo tem atuado com assessoria jurídica gratuita e articulação com o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública para proteger as comunidades e garantir a defesa dos territórios. “A gente faz o enfrentamento junto com o povo. Enquanto o título não vier, a gente vai continuar resistindo”, afirma o líder.

Caldeirão: o quilombo que resiste entre a memória, o avanço urbano e as mudanças do clima 

Em Salvaterra, no arquipélago do Marajó, o quilombo Caldeirão é cercado por igarapés e campos de várzea. Hoje, com cerca de duas mil famílias, a comunidade é uma das maiores do município e simboliza as contradições do território marajoara: um lugar onde a memória da escravidão ainda ecoa e a luta pela terra segue viva, entre o avanço do agronegócio, as invasões e o impacto das mudanças climáticas.

A professora aposentada Maria Auxiliadora dos Santos, de 67 anos, lembra que o Caldeirão nasceu do deslocamento forçado de pessoas negras trazidas por fazendeiros para trabalhar nas antigas fazendas da região. “Meu pai foi escravizado. Saía de manhã pra trabalhar na fazenda e só voltava à tardinha, se levasse comida comia, se não, passava o dia com fome. Meu avô também. Foi assim que eles começaram a povoar aqui”, conta.

Com o tempo, esses trabalhadores se fixaram às margens do rio, formando pequenas vilas. “Era só mato, só as estradinhas. As famílias começaram na beira do rio, eram poucas casas, todas de palha e barro”, recorda Maria das Graças Neves Gonçalves, a “Gracinha”, 76 anos, que também foi professora da escola local.

A origem do nome “Caldeirão”, segundo ela, vem de um fenômeno natural: um forte rebojo nas águas do rio, “como uma panela fervendo”, que inspirou os antigos moradores. O lugar era isolado, acessado apenas por canoa, e viveu durante décadas da agricultura e da pesca, práticas que seguem sendo a base da economia local.

Mas a história do Caldeirão não é apenas passado. Em 1999, a comunidade iniciou o processo de reconhecimento como território quilombola, impulsionada por uma pesquisa do antigo Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (CEDENPA) e pelo trabalho da Fundação Palmares. “Foi quando a gente começou a entender quem éramos. Fomos descobrindo nossa ancestralidade”, conta Maria Auxiliadora.

 

Professora aposentada Maria Auxiliadora dos Santos, de 67 anos. Foto: Harrison Lopes/Agência Carta Amazônia 

Mais de 20 anos depois, o título de propriedade ainda não chegou. A ausência da titulação abriu espaço para invasões e para o avanço do poder econômico sobre o local. “Caldeirão é grande, mas a falta de documento deixa tudo vulnerável. Invadiram as terras, construíram casas”, desabafa.

A agricultora Joneide Barbosa Lucena, 39 anos, representa a nova geração de quilombolas que tenta reconstruir o equilíbrio entre floresta e produção. “O clima mudou muito. Antes chovia, agora o sol tá muito forte. As bananeiras morrem por falta d’água. A terra está seca. Sem irrigação, a gente sofre”, relata.

 

Joneide Barbosa, agricultora quilombola - Foto: Harrison Lopes/Agência Carta Amazônia _1168.jpg 

Ela participa do projeto Marajó Resiliente, que incentiva o reflorestamento e o uso sustentável da terra, combinando saberes ancestrais a soluções inovadoras e assistência técnica especializada. “Hoje a gente tenta reflorestar, parar com a queima e plantar de novo”.

Mas os desafios ultrapassam o campo ambiental. Há também o social e o político. Gracinha lamenta que o reconhecimento do quilombo não tenha se traduzido em políticas públicas. “É quilombo só no nome. Não tem curso, não tem apoio. A gente precisa de projetos para juventude, para educação quilombola”, diz.

O líder quilombola Hilário Moraes, reforça que Caldeirão vive uma tensão entre a tradição e a urbanização. “Hoje o quilombo pode ser considerado urbano. Ele fica a poucos minutos do centro de Salvaterra. A orla, que era mais afastada, já teve que ser recuada sete vezes por causa da erosão do rio”, afirma. Ele conta que a região enfrentou longos anos de conflito com um fazendeiro que ocupava parte da área. “Foi uma luta dura, mas conseguimos conciliar. As terras ficaram com os quilombolas.”

 

Quilombo de Caldeirão - Foto: Harrison Lopes _1286.jpg  

Ele destaca ainda que Caldeirão é símbolo de resistência não só pela sua história, mas pelo papel que exerce na preservação ambiental. “As comunidades quilombolas são responsáveis por manter de pé boa parte da floresta do Marajó. Mas isso não é reconhecido. Falta apoio técnico, crédito e segurança jurídica.”

Hoje, o que se vê em Caldeirão é um lugar dividido entre a memória e o futuro. A beira do rio, que já foi espaço de brincadeiras e trocas comunitárias, se estreita com a força da erosão. As casas de palha deram lugar a construções de alvenaria, e as novas gerações buscam conciliar o uso da terra com a preservação.

Tudo que Maria Auxiliadora, Joneide, Gracinha e Hilário desejam é que a terra quilombola de Caldeirão nascida da luta e da ancestralidade, seja finalmente reconhecida, protegida e valorizada como o que ela é: um região de vida, de floresta e de memória viva da Amazônia negra.

Gurupá: o território que resiste entre o açaí e o veneno  

O barco desliza pelas águas turvas do rio Gurupá e revela, entre as copas de buritizeiros e palmeiras de açaí, as casas de madeira, pequenos trapiches, uma escola e um posto de saúde, na comunidade quilombola que leva o mesmo nome do rio. O cenário carrega séculos de resistência. Ali vivem as famílias de um dos quilombos mais antigos de Cachoeira do Arari, no arquipélago do Marajó.

 

Quilombo de Gurupá - Foto: Harrison Lopes/Agência Carta Amazônia  

No território quilombola Gurupá vivem cerca de mil pessoas, distribuídas em 291 famílias que têm o extrativismo, a pesca e a agricultura familiar como principal fonte de renda.

A nome da comunidade vem da história de um casal de negros fugidos do antigo engenho de Santana. “Ele era um mestre espiritual, o Guru, capturado quando tentava escapar. O lugar onde foi preso passou a ser chamado de Guru U pá — o lugar onde o mestre caiu com seu par, com tempo emendaram a pronúncia e ficou Gurupá”, conta Rosivaldo Moraes, quilombola, produtor de açaí, professor de matemática e vice-presidente da Associação de Remanescentes de Quilombolas de Gurupá.

Hoje, mais de dois séculos depois, a comunidade, fundada por descendentes de negros que trabalhavam nos engenhos do Marajó, criou um modo de vida em harmonia com a floresta, uma convivência que agora é ameaçada pelo avanço das fazendas e dos monocultivos.

Em Cachoeira do Arari, a paisagem mudou ao longo dos anos. O verde da várzea deu lugar a grandes plantações de arroz e um novo som passou a ecoar: o barulho das aeronaves que despejam agrotóxicos sobre os campos.

A instalação das fazendas de arroz se intensificaram a partir de 2011 e faz parte de um projeto que transferiu arrozeiros da Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol, em Roraima, para o Marajó, uma política criada sob o pretexto de “desenvolvimento agrícola”. Mas o resultado, segundo os moradores, foi devastador.

“Eles construíram um porto dentro do território quilombola e abriram uma rua ligando a fazenda até esse porto, para escoar a produção. Tudo isso sem ouvir a comunidade”, denuncia Hilário Moraes, representante dos quilombos do Marajó.

A estrutura, diz ele, foi erguida sem consulta ou licença ambiental adequada, uma violação direta da Convenção 169 da
OIT, que garante a consulta prévia, livre e informada sobre projetos e obras em áreas ocupadas por povos tradicionais.

 

Canais que desviam água do rio Arari para os arrozais ao redor - Foto: Harrison Lopes 

 

“Não precisa ser cientista pra ver o que está acontecendo. Eles jogam veneno de avião. O arroz está lá, mas a água corre pro rio Arari, e o Arari chega aqui. O peixe, o camarão, tudo vem contaminado”, diz Rosivaldo. “Sem contar que constroem canais que desviam o curso do rio para dentro dos arrozais”, lamenta o professor.

A fauna também sofre. “Antes o céu ficava preto de marrecas e patos selvagens. Hoje, esses bichos vão comer arroz nas fazendas e são mortos. É um desequilíbrio que mexe com tudo: com o rio, com as plantas, com a vida da gente”, afirma Rosivaldo.

Mesmo diante das ameaças, Gurupá mostra que o futuro pode brotar das raízes. A comunidade tem retomado práticas agroflorestais ancestrais, cultivando açaí junto a espécies nativas como cupuaçu, bacaba, banana e mandioca, em harmonia com a floresta. “Nossos avós já sabiam plantar sem destruir. Agora, a gente está voltando a fazer como eles faziam: misturando as plantas, respeitando a natureza…”, explica Rosivaldo.

Projetos como o Marajó Resiliente, em parceria com organizações locais, fortalecem essa transição agroecológica com sementes adaptadas ao clima, formação para jovens agricultores e valorização dos saberes tradicionais. Para os moradores, a titulação é o ponto de virada: a garantia contra invasões, o acesso a políticas públicas e a consolidação de um modelo de desenvolvimento com a floresta em pé, uma luta que atravessa gerações.

 

Rosivaldo Morais, liderança quilombola de Gurupá. Foto Harrison Lopes _1466_resized.jpg 

“Já vencemos todas as etapas no Incra. Falta apenas a assinatura que transforma em realidade o que já é nosso por direito. A titulação é uma reparação histórica. É o reconhecimento de que a gente existe e tem o direito de viver da nossa terra”, resume Rosivaldo.

titulação de territórios quilombolas começa com a certificação da Fundação Cultural Palmares (FCP), vinculada ao Ministério da Cultura. O documento administrativo geralmente é solicitado pela própria comunidade, que confirma a identidade dos territórios quilombolas e quilombos. Ante disso, a FCP realiza um estudo que apresenta elementos culturais, históricos e sociais para comprovar que as famílias são remanescentes de pessoas escravizados no Brasil.  

Com isso, o processo de titulação pode ser aberto no Incra – órgão que é responsável pelo processo em terras públicas federais ou que incidem em áreas de particulares. A titulação é o que garante o direito à terra pelos quilombolas, com estabelecimento dos limites territoriais. O órgão tem a responsabilidade de iniciar um Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), documento formado por um relatório antropológico, levantamento fundiário, delimitação da área e cadastro das famílias.

Apesar das dores e retrocessos, o movimento quilombola marajoara segue de pé. “O futuro é ancestral”, resume Rosivaldo, ecoando uma das frases mais conhecidas de Ailton Krenak. “É voltar a viver como nossos antepassados viviam — com respeito à terra, à água e à vida.”

A esperança que move essas comunidades não é utópica, é concreta: está nos jovens que voltam para ensinar, nas roças recuperadas, nas florestas que renascem e na certeza de que cada passo rumo ao título coletivo é também um passo rumo à liberdade. “Enquanto a gente existir, o quilombo vai existir. E enquanto o quilombo existir, a Amazônia vai continuar viva”, afirma Hilário.