Segunda, 25 de Novembro de 2024

Opinião

Quarta Gloriosa

Por Jurandy Valença, artista visual, curador e jornalista

Foto: Reprodução
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16 fevereiro, 2022 às 19:31

Há 100 anos, entre os dias 11 e 18 de fevereiro de 1922, São Paulo foi palco de uma série de acontecimentos culturais que reverberam até hoje. A Semana de Arte Moderna de 1922 foi o marco do movimento modernista no Brasil. E teve como seus principais protagonistas Oswald e Mário de Andrade, na literatura; Víctor Brecheret, na escultura; e Di Cavalcanti e Anita Malfatti, na pintura. Aliás, ela foi responsável, anos antes, pela primeira exposição modernista brasileira, em 1917. Suas obras, influenciada pelo cubismo, expressionismo e futurismo, escandalizaram a sociedade da época.

O evento expôs ao público obras em diversas linguagens artísticas que rompiam com a tradição artística dominante até então. E inspirou artistas em todo o país a buscar uma revolução das antigas formas existentes de pensar a arte até então. A semana trouxe para o país conceitos e ideias que já estavam em andamento na Europa, mas que, segundo Gilberto Mendonça Teles, “já existiam artistas brasileiros modernistas antes de 22, mas eles apenas não tinham articulado ainda sua visão estética em um projeto unificado”. Artistas como Anita, Oswald, Tarsila do Amaral, Mário, Graça Aranha e Victor, entre outros, que tinham contato com tendências europeias, traziam ao Brasil uma nova maneira de ver o mundo. A literatura rebuscada, formal não estava mais em voga, com seus poemas metrificados. O novo, o moderno era a forma livre. E na prosa, o modernismo adquiriu as formas do romance regionalista que tratava de questões locais, sociais.

 

A metrópole antropofágica

Não podemos esquecer que a Semana aconteceu anos depois do fim da grande primeira guerra mundial, e que seus efeitos devastadores não só haviam assolado a Europa, como o mundo. Não havia mais lugar para o idealismo romântico, nem para o simbolismo e muito menos para o parnasianismo. A cidade, em vias de se tornar a metrópole que viria a ser, passava por processos de rápida urbanização com a indústria transformando a cartografia urbana. Aqui, a modernização significava “o fim” da vida rural e da aristocracia. Uma nova brasilidade nasce, e em meio a esse rebuliço moderno, em 1928 surgia o manifesto antropofágico de Oswald de Andrade, que daria início ao movimento que décadas depois levaria ao surgimento do tropicalismo na década de 1960.

As primeiras décadas do século XX traziam inúmeras novidades. Em meio à explosão demográfica, a cidade via o surgimento dos primeiros cinemas, dos automóveis, as fricções causadas entre o diálogo do novo com o tradicional, e entre o modo de vida interiorano e a visão cosmopolita vinda da Europa. Ademais, o ano de 1922 foi um marco histórico no país em muitos sentidos. Teve a fundação do Partido Comunista do Brasil (PCB), a primeira transmissão radiofônica no país e um evento bélico importante, o levante tenentista do Forte de Copacabana.

 

O Departamento de Cultura

Vale a pena lembrar também, que 13 anos depois da azáfama provocada pela Semana, Mário de Andrade assumiu a direção do Departamento de Cultura e Recreação da prefeitura de São Paulo, onde ficou até 1938. O convite foi feito pelo advogado, jornalista e intelectual Paulo Duarte (1899-1984), que foi chefe de gabinete do então prefeito Fábio Prado. O departamento veio a se tornar a atual Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, e em seus primeiros anos teve, além de Mário, Sérgio Milliet e Rubens Borba de Moraes, que veio anos depois, em 1942, na gestão do prefeito Prestes Maia, a ser diretor da Biblioteca Mário de Andrade, tendo – inclusive – criado a Seção de Obras Raras e Especiais da biblioteca que abriga preciosidades do Brasil e do mundo.

 

Contradições e contribuições

Não há dúvida que o modernismo paulista teve como um dos seus eixos, a polêmica. Alvo de muitas críticas, a Semana de Arte Moderna só ganhou sua importância com o passar dos anos e um século depois é fundamental ver e rever as contradições e contribuições do movimento. Uma ótima dica de leitura para compreender o que significou há 100 anos, e o que ainda significa hoje é a leitura do livro “Modernismos 1922-2022”, que reúne 29 ensaios sobre a Semana de 22, seus antecedentes e desdobramentos, dando luz à novas interpretações sobre os bastidores do modernismo paulista e sua repercussão até agora. Organizado por Gênese Andrade, com consultoria de Jorge Schwartz, a edição é da Companhia das Letras, e abriga textos de autores consagrados em diversos campos da crítica, como a literatura, música, artes visuais, moda, urbanismo, sexualidade, raça, gênero, política e outros temas.

O zunzum do Modernismo de 1922, com seus pré-modernistas, seus modernistas e os “pós-modernistas” que estão aqui e agora reinventando nestes cem anos os sentidos da Semana, não quiseram só engendrar a ruptura com o passado, mas também – e principalmente – transformá-lo em algo novo, algo verdadeiramente brasileiro e moderno. Na verdade, a Semana de Arte Moderna começou em 1922, mas nunca terminou. Os ideais da libertação formal, da busca pela identidade regional e da procura pelo novo ainda persistem.

 

Está fundado o desvairismo

Sempre imaginei o Mário de Andrade como o Apolo, e o Oswald de Andrade como o Dionísio da Semana de Arte Moderna. Não que um não tivesse elementos, camadas apolíneas e dionisíacas. Em tempos de aridez e de morte nos quais vivemos, essa efeméride tem um significado especial, ainda mais no ano que também se comemora o bicentenário da independência do Brasil. Tem um sentido de vida. Em um delírio meu, imagino D. Pedro I no seu grito do Ipiranga acompanhado de Rimbaud, Oswald e Mário de Andrade, gritando em coro “É preciso ser absolutamente moderno”, e repetiam “Arte, Independência e Vida”, enquanto Tarsila do Amaral, com seu mantô vermelho do Jean Patou, dançava com Hélio Oiticica com um Parangolé vermelho, ali, às margens do rio. Afinal, “está fundado o desvairismo” como dizia Mário no prefácio do seu Paulicéia Desvairada.